A EC95 não contribui em nada para a racionalização do gasto público e nem para a melhora de sua eficiência, mas sim para a destruição progressiva de direitos, acirramento das desigualdades e ampliação de privilégios da elite econômica.
Por que a dívida pública cresceu no país? O teto de gastos estabeleceu um limite somente para as despesas primárias (aquelas destinadas à viabilização das políticas públicas) e não para as despesas financeiras. Segundo o acórdão do Tribunal de Contas da União 1084/2018, que realizou a pedido do Senado uma auditoria da dívida pública brasileira, o aumento da divida se deve, sobretudo, “ao excessivo nível de incentivos fiscais por meio de subsídios e renúncias tributárias e ao pagamento elevado de juros incidentes sobre a dívida” e não ao gasto público com políticas sociais e ambiental, como sugerido pelo economista.
O Brasil tem política econômica de austeridade: Marcos Mendes afirma que não existe “política econômica de austeridade” no país. Há uma ampla literatura que analisa as políticas de austeridade no mundo, como Blyth, que diverge de Alesina, autor citado por Mendes.
Essa literatura define a austeridade como uma política econômica baseada em cortes orçamentários desproporcionais sobre despesas com direitos. O teto de gastos (EC95/2016) é considerado a medida mais austera do mundo por não permitir crescimento real de despesas (a correção é apenas pela inflação), por ser excessivamente longo (20 anos) e pelo tipo de norma que o determina (emenda à Constituição).
O teto de gastos não decorre do descontrole dos gastos públicos: Mendes também retoma a tese que em 2014 teve início a crise fiscal resultado de um descontrole dos gastos públicos pelo Governo Federal. É necessário afirmar que a crise fiscal não se deveu ao aumento excessivo do gasto público, mas sim à redução da receita, à queda da arrecadação em decorrência, entre outros fatores, do fim do ciclo de commodities e da desoneração de determinados setores econômicos e aos efeitos da crise internacional, acirrados no país pela adoção do ajuste fiscal extremamente restritivo.
O teto de gastos comprometeu a capacidade do país de enfrentar a pandemia: como em seu primeiro artigo sobre a EC95, Marcos Mendes afirma que o Teto não impactou o enfrentamento da COVID-19. Surpreendentemente, chegou a dizer que a EC 95 contribuiu para o aumento em 9,3 bilhões de reais para a saúde. Esse argumento é falacioso por dois motivos.
Primeiro, porque ignora que em 2017 o teto não valia ainda para saúde e educação. Segundo, porque desconsidera os efeitos da liminar na ADI 5595 que acabou com o escalonamento do piso para saúde na Emenda Constitucional 86. De acordo com o estudo da Coalizão Direitos Valem Mais apresentado ao STF, entre 2017 e 2019 ocorreu uma perda de no mínimo R$ 12 bilhões para o piso de recursos para o SUS, com base nos efeitos no valor mínimo a ser aplicado em saúde pela EC 95 em comparação com os da EC86.
O Estado e o funcionalismo público: Apesar da insistência de Mendes no argumento de que o Estado é incapaz e ineficiente, a pandemia tem demonstrado o contrário: os países que melhor responderam à crise sanitária gerada pela Covid-19 foram aqueles que possuem sistemas públicos de saúde, como o SUS.
Sobre o funcionalismo público, não se pode generalizar para o conjunto os privilégios de uma elite que ganha altos salários, inclusive acima do limite constitucional. Majoritariamente constituída por mulheres, cerca de 50% da categoria dos servidores públicos são professores, profissionais de saúde, de limpeza e da segurança pública. Metade do funcionalismo recebe salários inferiores a R$ 2.700 mensais.
O que limita a redução de desigualdade pela política fiscal não é a ineficácia do gasto social e sim a regressividade do sistema tributário. Mendes silencia sobre o fato que temos no Brasil um dos sistemas tributários mais regressivos do mundo, que cobra mais dos pobres e negros e menos dos ricos.
Não há dúvida que os gastos públicos com saúde e educação contribuem decisivamente para a diminuição das desigualdades, como mostra Fernando Silveira no Comunicado IPEA nº 92. Para que o efeito combinado do aumento de gasto social e da tributação impacte mais profundamente as desigualdades e amplie seus efeitos redistributivos, é fundamental um sistema tributário progressivo.
Neste segundo semestre, o Congresso Nacional terá mais uma oportunidade de corrigir essa perversa e histórica distorção na tramitação da reforma tributária, que de forma alguma pode se restringir à mera simplificação da tributação sobre o consumo.
Por fim, sobre o teto de gastos do Rio Grande do Norte: assim como outras unidades da federação, o estado aprovou a PEC 19/2019 que estabeleceu o teto de gastos em resposta à exigência do governo federal para acessar empréstimos.
Mas tanto o Rio Grande do Norte, como outros estados, não reproduziram a EC 95/2016. Na lei potiguar, foram retiradas do Teto as áreas essenciais de Saúde, Educação e Segurança Pública e preservados os investimentos; o teto não ficou vinculado à inflação do ano anterior, mas sim ao crescimento da receita; e a duração é de oito anos, podendo ser revista depois de quatro anos de vigência. Muito diferente dos vintes anos de duração da EC95.
Denise Carreira
Educadora, integrante da coordenação da Ação Educativa, Plataforma DHESCA e da Coalizão Direitos Valem Mais
Fátima Bezerra
Governadora do Rio Grande do Norte (PT), ex-senadora da República (2015-18) e pedagoga
Caio Magri
Diretor-presidente do Instituto Ethos
Regina Adami
Gestora pública, integrante do Irohim e da coordenação nacional da Coalizão Negra por Direitos
Publicação original em: Folha de São Paulo