Apesar de representar avanços importantes em relação ao Teto de Gastos, a proposta de novo arcabouço fiscal que está tramitando hoje no Senado tem um grande revés, que precisa ser revertido urgentemente pela Casa da Federação: de forma imediata a transformação dos pisos de gastos com saúde e educação em tetos, e na sequência a ameaça do fim de tais pisos. Quem vai pagar essa conta são os estados e municípios, pois a diminuição dos gastos pela União levará a uma pressão nos demais entes federativos pela manutenção e expansão dos serviços públicos essenciais para a população.
Os pisos orçamentários foram vitórias fundamentais da sociedade brasileira para a expansão e universalização da saúde e da educação. Na constituição de 1988 e em posteriores alterações, foi fixado que a saúde e a educação teriam vinculações com a receita corrente líquida federal: na saúde, 15% com ASPS – Ações e Serviços Públicos em Saúde, enquanto na educação, 18% com MDE – Manutenção e Desenvolvimento do Ensino. Com o advento da EC-95/2016 , tais vinculações foram substituídas pela regra do Teto, isso é, a partir de 2017, os gastos com esses direitos fundamentais passariam a ser o valor executado em 2016 corrigidos apenas pela inflação, sem crescimento real, independente das necessidades de saúde e educação da população que tendem a aumentar, por exemplo, com o crescimento e envelhecimento populacional.
A recente revogação do Teto significou a volta dos pisos atrelados à receita. Porém, a regra proposta pelo Executivo para o arcabouço limita o crescimento das despesas a 70% do aumento da arrecadação anual. Entretanto, como os pisos têm uma regra constitucional própria e são gastos obrigatórios, estes irão crescer em 100% do aumento da arrecadação. Desta forma, forma-se um cenário em que os pisos vão ocupar um espaço cada vez maior no Teto, esmagando as demais despesas discricionárias.
O substitutivo apresentado na Câmara dos Deputados agravou o problema ao tirar o Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica) e o Piso da Enfermagem das exceções do Teto, o que implica em maior restrição aos orçamentos da saúde e da educação, já que esses gastos irão competir com outros dentro das próprias políticas. A escolha foi justificada pelo relator por se tratarem de despesas primárias obrigatórias da União, que trariam precedentes para que outras despesas de mesma natureza fossem também excluídas.
Enquanto isso, despesas que servem como complementação da União a estados e municípios foram excluídas do teto por não serem caracterizadas como despesas primárias da União, como a partilha de recursos financeiros de concessão florestal e advindos da alienação de bens imóveis. Porém, a destinação de recursos do Fundo Social do Pré-Sal para a complementação da União ao pagamento do piso da enfermagem e a complementação do Fundeb também são repartições federativas de recursos, mas que não ganharam o mesmo destino dessas outras despesas.
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Precisamos alargar a noção de repartição federativa de recursos, pois as limitações do novo arcabouço fiscal geram consideráveis efeitos para os demais entes da federação. Quando a União reduz sua participação no custeio federativo de serviços públicos essenciais, os demais entes federados são pressionados. Não é demais lembrar que a isenção fiscal do IPI e do ICMS em 2022 praticamente acabou com os efeitos da expansão da complementação federal ao Fundeb. Transferências constitucionais obrigatórias como o Fundeb e o Piso da Enfermagem não podem ser entendidas apenas como despesas primárias da União, pois também são deveres de repartição federativa de receitas, devendo ficar fora do teto de gastos do novo arcabouço fiscal. As consequências da retração federal certamente serão sentidas nos estados e municípios, como já tem ocorrido com o SUS e com a educação básica obrigatória¹.
O governo já percebeu que os pisos como estão hoje, principalmente quando incluídos o Fundeb e o piso de enfermagem no novo teto, serão insustentáveis. Mas a proposta apresentada, até agora, para resolvê-lo é acabar com os pisos de saúde e educação. Dada a provável dificuldade de aumento de arrecadação e a falta de priorização de uma reforma tributária que imponha mais tributos aos ricos, que abririam uma margem maior às despesas, o fim da vinculação é uma possibilidade cada vez mais factível, o que significará um desastre do ponto de vista social.
Deixar de lado a discussão sobre os pisos durante a tramitação do arcabouço traz um impacto desestruturante na gestão federativa de tais políticas públicas. Há uma guerra federativa de despesas e o custo do adiamento do cumprimento da Constituição cairá nos estados e municípios.
Precisamos urgentemente retirar a totalidade dos pisos de saúde e educação da proposta de novo arcabouço fiscal, com os objetivos de garantir o aumento de recursos da União para estes direitos, como também não ampliar a sobrecarga das finanças subnacionais. Nesse contexto, abrir mão tão rápido dos nossos poucos e cada vez menores trunfos de defesa da atuação estatal, como é o caso dos pisos para saúde e educação, é, no mínimo, temerário. Precisamos defender o federalismo fiscal e o custeio dos direitos fundamentais, e o caminho para isso começa por evitar que o arcabouço fiscal reduza o financiamento de direitos!
Criada em 2018, a Coalizão Direitos Valem Mais é um esforço intersetorial comprometido com a democratização da economia e crítico às drásticas políticas de ajuste fiscal, adotadas pelo governo brasileiro nos últimos anos, que tanto destruíram a capacidade do Estado de proteger a população, de combater a miséria crescente e de efetivar políticas públicas garantidoras de direitos. Já contribuíram para os acúmulos desta coalizão de 200 associações, movimentos sociais e consórcios de gestores públicos; organizações, fóruns, redes, plataformas da sociedade civil; conselhos nacionais de direitos; entidades sindicais; associações de juristas e economistas e instituições de pesquisa acadêmica.
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¹Análise completa está aqui: https://www.conjur.com.br/2023-mai-30/contas-vista-plp-932023-frustra-federalismo-fiscal-custeio-direitos